sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Entre parênteses: O Inferno de quem escolheu por sua própria consciência ou ainda bem que eu não nasci no século XIV - Canto X da Divina Comédia

Ilustração de Gustave Doré

O Canto X da Divina Comédia de Dante Alighieri é o Inferno dos Hereges/heresiarcas. Originalmente, heresia significa escolha (uma escolha diferente daquela que era imposta pela Igreja), uma outra interpretação dos dogmas e verdades canônicas, às vezes na vírgula, no detalhe.
Na Itália dos séculos XIII e XIV as ideias de liberdade de pensamento e de culto nem sequer passavam pelas cabeças das autoridades, e, não bastasse a condenação eterna aos tormentos do inferno, também pesava sobre os hereges a ameaça das rodas, tenazes e ferros em brasa nas catacumbas e/ou as fogueiras em praça pública.
Não era nada fácil fazer escolhas, já que a possibilidade de faze-las livremente (e, ainda mais, de mantê-las) era nula. A culpa era pressuposta antes mesmo de ser conhecida - cabia ao acusado provar que era inocente, e era raro que o conseguisse, dependendo de quem o acusava. Em seu enorme e clássico poema, Dante Alighieri condenou ao Inferno alguns "escolhedores" que haviam feito opções diferentes - desde Epicuro, filósofo materialista grego dos século IV e III a.C. (com todos os seus seguidores), até contemporâneos seus, adversários políticos e mesmo amigos que não compartilhavam de suas crenças.
Numa série de postagens sobre a Noite Escura da Alma, a culpa e o castigo, não dá pra não passar pelo Inferno de Dante, particularmente o inferno do canto X, onde estão aqueles que foram condenados porque escolheram a partir de suas próprias consciências. Aqui ainda estamos muito longe da ideia de perdão.


Canto X
Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro

Caminhando os Poetas entre as arcadas, onde estão penando as almas dos heresiarcas, Dante manifesta a Virgílio o desejo de ver a gente nelas sepultada e de falar a alguém. Nisto ouve uma voz chamá-lo. É Farinata degli Uberti. Enquanto o Poeta conversa com ele é interrompido por Cavalcante Cavalcanti, que lhe indaga por seu filho Guido. Continua Dante o começado discurso com Farinata, que lhe prediz obscuramente o exílio.
 
Entra Virgílio por vereda estreita,
Que entre o muro e os martírios vai seguindo:
Após os seus meu passo se endireita.

— “Virtude suma! Ó tu, que, dirigindo
Me estás, ao teu sabor na estância triste,
Me instrui, ao meu desejo deferindo.

“A gente ver se pode que ora existe
Naquelas sepulturas descobertas,
A que nem guarda, nem defesa assiste?” —

— “Serão” — me respondeu — “todas cobertas
No dia, em que, de Josafá tornando,
Os corpos tragam, de que estão desertas.

“Epicuro aqui jaz com todo o bando
Dos discípulos seus, que professaram
Que alma fenece, a vida em se acabando.

“O que as tuas palavras declararam
Satisfeito há de ser, como o que vejo
Dos votos que em teu peito se ocultaram”. —

— “Não te expus, meu bom Mestre, quanto almejo,
Porque de breve ser tenho o cuidado,
E a mais longo dizer não deste ensejo”. —

— “Ó Toscano, que, vivo hás penetrado
Do fogo na cidade e és tão modesto,
Detém-te um pouco, se te for de agrado.

“Por teu falar me está bem manifesto
Que nessa nobre pátria tens nascido,
A que fora eu talvez assaz molesto”. —

Ouço este som, de súbito saído
De um dos jazigos: tanto eu me torvara,
Que ao Mestre me achegava espavorido.

— “Que temes tu?” — Virgílio diz — “Repara:
É Farinata em seu sepulcro alçado,
Do busto em toda a altura, se depara”. —

Na sombra os olhos tinha eu já fitado:
Altiva levantava a fronte e o peito,
Como em desprezo do infernal estado.

Por entre as tumbas me levou direito
Ao vulto o Mestre com seu braço presto,
Dizendo-me: — “Sê claro em teu conceito!” —

Junto ao sepulcro apenas fui, com gesto
Severo um pouco olhou-me e desdenhoso
— “Teus maiores?” — falou — “Faz manifesto”.

Eu, já de obedecer-lhe desejoso,
Quanto sabia expus-lhe francamente.
O sobrolho arqueava um tanto iroso,

E tornou: — “Guerra crua fez tua gente
A mim, aos meus avós, ao partido;
Mas duas vezes bani-os justamente”. —

— “Mas todos os que expulsos tinham sido
Se hão, de uma e de outra vez repatriado:
Não têm essa arte os vossos aprendido”. —

Surgindo então de Farinata ao lado
Somente o rosto um vulto nos mostrava,
Sobre os joelhos, cheio, levantado.

Com ansiosos olhos me cercava
A ver se alguém viera ali comigo.
Mas, perdida a esperança, que o animava,

Pranteando inquiriu: — “Se ao reino imigo
Por prêmio baixas do teu alto engenho,
Onde é meu filho? Pois não vem contigo?

— “Por moto próprio aqui” — volvi — “não venho;
Perto me aguarda quem meus passos guia,
Vosso Guido talvez teve-o em desdenho”.

A pena sua e as vozes, que lhe ouvia,
Denunciado haviam-me o seu nome:
Pude assim responder quanto cumpria.

Súbito ergueu-se o espírito e gritou-me:
“Teve disseste: não mais vive agora?
O corpo seu a terra já consome?”

Como eu tivesse em responder demora
À pergunta, de costas recaía,
E novamente não mostrou-se fora.

Mas esse outro magnânimo, que havia
De antes falado não mudou de aspeito;
No colo e busto imóvel persistia.

— “Se aquela arte não dera ao meu proveito” —
Prosseguiu — “me produz esta certeza
Maior tormento no adurente leito.

“Porém vezes cinqüenta a face acesa
Não mostrará do inferno a soberana
Sem que tu saibas quanto essa arte pesa.

“Assim possas voltar à vida humana!
Contra os meus, diz, por que tanta maldade
Em cada lei, que desse povo emana” —

Eu respondi: — “O estrago, a mortandade,
Que do Árbia as águas de rubor tingira
A cúria nossa move à austeridade”. —

Inclinando a cabeça então, suspira
E diz: — “não fui lá só naquele dia,
Nem sem motivo aos outros eu seguira.

“Porém achei-me só, quando exigia
De Florença a ruína o geral brado:
A peito descoberto eu defendia-a”. —

— “Seja o descanso à vossa prole dado:
Mas, vos suplico, de penoso enleio
Fique o juízo meu descativado.

“Se bem percebo, do futuro ao seio
Subindo e ao tempo o curso antecipando,
Do presente ignorais todo o rodeio”. —

— “Os que têm vista má nos semelhando” —
Tornou-me — “as cousas mais distantes vemos,
De Deus última luz em nós raiando.

“Quando estão perto ou no presente as temos
Se apaga a lucidez, e a mente aprende
Por outrem só o que de vós sabemos.

“Ciência nossa do porvir depende;
Em sendo a porta do porvir cerrada,
Essa luz morre em nós, não mais se acende”.

Então minha alma, de remorso entrada,
“Dize” — replico — à sombra, a quem falava,
Que o filho inda entre os vivos tem morada.

Se presto lhe não disse o que exorava,
Da dúvida, que, há pouco, heis-me explicado
Pela influência dominado eu stava”. —

Se bem fosse do Mestre apelidado,
Rogando a sombra a me dizer prossigo
As almas, de quem stava acompanhando.

Respondeu: — “Muitos mil jazem comigo
Aqui dentro, o Segundo Frederico,
Com ele o cardeal, de outros não digo”. —

Dos olhos se apartou. A cismar fico,
Voltando ao sábio Mestre, na ameaça
Desse, que ouvira, vaticínio único.

Ele caminha, e, enquanto avante passa,
Me diz: “Por que és torvado?” — Eu tudo conto
Expondo o que me inquieta e me embaraça.

— “Do que ouviste a memória cada ponto
Conserva!” — o sábio ordena; e, logo, alçando
O dedo, segue: — “Agora escuta pronto.

“Ante o doce raiar daquela estando,
Que tudo aos belos olhos tem presente,
Se irão da vida os transes revelando”. —

Moveu-se logo à esquerda diligente;
Deixando o muro, ao centro caminhava
Por senda, que descia ao vale horrente,

Que hediondos vapores exalava.

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Esta versão do Canto X da Divina Comédia está em:
http://pt.wikisource.org/wiki/A_Divina_Com%C3%A9dia/Inferno/X

sobre os personagens e eventos citados por Dante neste canto consultar:
http://www.stelle.com.br/pt/inferno/notas_10.html

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